Grêmio Libertador

A conta que temos que pagar

Com tanta coisa acontecendo, o racismo parece que está sendo posto de lado. Para tentar diminuir isso, damos espaço para este belo texto do Igor Natusch. Até que ponto nós estamos realmente assumindo a nossa responsabilidade? Até que ponto só queremos achar um culpado? Leiam. E não deixem de pensar sobre.

Patrícia Moreira reproduziu de forma ignorante um grito enraizado no imaginário do Grêmio. Dizer isso não é inocentá-la: é ampliar o olhar.

Patrícia não inventou o termo “macaco” nem foi a primeira pessoa a usá-lo. Durante muito tempo todos toleraram o “macaco”: gremistas, imprensa, boa parte da torcida colorada inclusive. Alguns ainda querem tolerar hoje em dia mesmo, ignorando tudo que acontece a seu redor. Foi essa omissão coletiva que tornou “macaco” um termo “folclórico”. Que fez dele expressão corrente no Olímpico e Arena. E Patrícia o reproduziu.

Não peço e nem proponho clemência. Patrícia Moreira deve e irá responder por seu ato. Mas me enoja que MUITA gente que cantou MUITO “macaco” esteja aí, com o dedo acusador em riste, apontando para ela como se nela estivesse todo o problema. Não está. Muita gente que CALOU diante do “macaco” e que RELATIVIZOU o termo em inúmeras oportunidades agora bate sem dó em Patrícia. Evitam assim olhar para si mesmos. Patrícia Moreira não é vítima de nada, mas é um sintoma de um sistema doente, que reproduz dentro do estádio o que existe fora dele.

Tá faltando mea culpa nessa história. Pouquíssimos dizem “eu cantei macaco e me arrependo”. “Eu vi cantarem macaco e não disse nada”. “Eu já disse pro meu filho que Inter era time de negão”. “Eu já achei que o cara era bandido só por ser negro”. “Eu já dei risada quando fizeram piada de negro”. Nada: cai tudo na conta da Patrícia.

Eu já cantei “macaco” no Olímpico. Felizmente me dei conta do erro e passei a ser voz contrária, lá pelos idos de 2005. Mas cantei. Tenho culpa. Vi cantarem “macaco” muitas vezes e, por não querer me incomodar, fingi para mim mesmo que não podia agir. Calei, mas não pedi que calassem. Há tempos busco corrigir minha omissão inicial quanto ao “macaco”, do mesmo modo que luto (com sucesso, espero) para eliminar outros tantos defeitos que herdei da sociedade e que carreguei dentro de mim. Mas que fique claro: isso não me faz melhor que ninguém. Eu já fui caixa de ressonância.

Só admito gremista que NUNCA cantou “macaco” xingando Patrícia. Só admito alguém que JAMAIS relativizou o termo condenando-a sem ressalvas. Somos TODOS responsáveis pelo que aconteceu ao Grêmio. Em especial os gremistas mesmo, claro – e carregaremos nossa cruz sim, vamos precisar sim cumprir o calvário até conseguirmos nos livrar dessa mancha vergonhosa em nossa história. Mas que o racismo vire grito de guerra em estádios não é responsabilidade exclusiva dos gremistas. E certamente não só de Patrícia. Ela foi nosso VENTRÍLOQUO. Quando ergueu a voz, eram 15 ou 20 anos de torcida gremista xingando Aranha por meio dela. E eram décadas de uma torcida encorajada a seguir na trilha do racismo pela omissão de toda a sociedade. Era a sociedade toda xingando, na figura de Aranha, todos os habitantes negros do Brasil.

Tem muita gente endividada aí querendo passar a conta adiante: que cada um pague a sua. Que Patrícia Moreira pague a sua dívida, que o Grêmio quite a sua – e que a sociedade pague a sua também. E admitir que já estivemos engolidos pelo racismo não enfraquece ninguém. Pelo contrário: nos liberta e nos coloca do lado certo da luta.

Igor Natusch é jornalista e gremista

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