Grêmio Libertador

Gremismo e machismo

Tenho certeza que há muitas maneiras da gente se envolver com futebol. Eu, por exemplo. Enlouqueço com o juiz na hora do jogo, mas no dia seguinte já esqueci quem tomou amarelo e estará suspenso na próxima partida. Dirijo o time da arquibancada tal qual uma flanelinha ensandecida – “vira! vira! pro outro lado agora!!!!” -, compartilho meus palpites sobre esquemas táticos, mas não vejo graça alguma em ir pra mesa do bar discutir contratações. Corneto sem piedade nos 90 minutos, mas grito “eu te amo” na mesma proporção. Não tenho ideia de valores de salário, sei lá como estão as contas do clube e meu cérebro não guarda modelos de camisa ou escalações da terceira rodada do Brasileirão de 2009. Não tenho nada contra roupas vermelhas e nem tenho secador em casa. Tem gente que bem antes pelo contrário. Tem quem não dorme direito na véspera do jogo. Tem quem acorde com a cara inchada de chorar. Tem quem ainda se agarra a todas as místicas libertadoras e tem que já planeja o segundo semestre. Tem quem falte o almoço de domingo por conta do cunhado colorado. Tem quem dá um beijo na tia-avó e diz “boa sorte pra vocês” quando ela liga a TV pra ver o Inter.

Tem até quem ache que ISSO é torcer: “Vote na Musa do Grêmio, Suelen Souto, para a Musa do Gauchão 2016. Vamos mostrar a força da torcida mais fanática do Brasil!”

No Portal Oficial do Grêmio: “Vale vaga na final”

Eu dizia logo ali, no parágrafo anterior, que as pessoas têm relações diversas com o futebol e, mais especificamente, com o Grêmio. O que não significa que toda relação com o futebol/o Grêmio seja individualmente saudável, moralmente defensável ou socialmente válida. Tudo tem limites, inclusive o gremismo.

Alguns limites estão bem claros: matar um torcedor adversário, por exemplo, não é torcer. É crime. Querer que uma mulher vença um concurso de gostosa ops musa do campeonato em nome do clube não é torcer. É machismo. O mesmo machismo que afasta as mulheres do futebol, achata nossos salários, condena uma saia curta. O mesmo machismo que estupra, que espanca, que mata.

Eu tento entender a posição do torcedor que acredita nessa esparrela. Tento até mesmo entender a posição dos dirigentes responsáveis pela comunicação e pelo marketing do clube (embora a eles direcione a minha mais profunda repulsa, porque uma coisa é ser um indivíduo, outra bem diferente é representar uma instituição). Eles, como nós, vivem em uma sociedade onde a beleza feminina – que basicamente pode ser resumida àquilo que dizem que uma mulher deve ser/parecer para agradar um homem – é um valor. Portanto, ter “a mais gata” entre nossas torcedoras nos faria ter mais valor, nos faria “vencedores”.

Mas venceríamos o quê, exatamente? Ou melhor: “quem” venceríamos?

Bom, aí é que está o xis da questão. Não se trata de uma vitória das mulheres gremistas. A mulher gremista, neste caso, é um OBJETO. E quando a gente diz objeto não é apenas uma comparação entre uma mulher e um abajur. Estamos dizendo que a mulher ali, sendo votada pela torcida para ser escolhida a gostosa ops musa do Gauchão, esta mulher não tem voz. Ela não diz nada. Ela não tem o que dizer. Ela só está lá sendo objeto do olhar alheio.

[Pode-se tirar o adjetivo “gremista” logo após o “mulher” e o raciocínio segue sendo válido. Faço esta especificação apenas porque sei que estou aqui falando com gremistas e sobre uma situação gremista.]

E o grande problema de ser OBJETO é NÃO SER SUJEITO. É perder a capacidade de se fazer ouvir. É perder o direito de intervir. É deixar de ser para apenas estar onde outros permitirem que se esteja.

Quando a instituição Grêmio aprova e incentiva a associação entre torcer e escolher a gostosa ops musa do Gauchão, está nos dizendo que nós, mulheres gremistas, não temos voz, não podemos intervir. Está nos dizendo que não somos. Que não estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver, mas só onde o Grêmio nos quiser.

A este Grêmio, eu gostaria de lembrar que temos muito a dizer. Que nossa voz também enche a Arena. Ouçam.

E onde o Grêmio estiver. E onde ela quiser. (Foto: página Grêmio Antifascista no Facebook)

Em tempo: a Suelen “perdeu” a semifinal do campeonato de gostosa ops musa do Gauchão. Acredito que a Suelen possa ter ficado triste. Mas, Suelen, querida, a culpa não é tua. A culpa é de quem nos ensinou que é preciso corresponder aos tais critérios vigentes de beleza. A culpa, querida, é de quem acha que estes critérios servem para nos definir, nos enquadrar e até nos premiar, como se só estes critérios pudessem nos dizer quem somos. A culpa, Suelen, é de quem lucra com a perpetuação desse modelo. Então, Suelen, beijinho no ombro que a punheta passa longe.

Comparilhe isso: