Grêmio Libertador

O Grêmio e as intenções

Faz mais de dez anos que eu resolvi me aventurar no estudo da história. Queria trabalhar com tantos assuntos que eu achava que ainda estão mal contados que acabei chegando na história da Primeira República Brasileira (conhecida como “República Velha”). Fiz a graduação, mestrado e agora estou no doutorado sobre o tema. É um período bastante interessante. Pouca gente se dá conta, mas apenas em 1889 o mandatário máximo do Brasil deixou de ser alguém que saiu do saco real do pai dele (quem era a mãe interessava menos ainda…). Foi por essa época que Charles Miller trouxe o futebol par o centro do país, em 1894. Ou seja, apenas SEIS anos após a abolição da escravatura, que é de 1888.

Time da Liga das Canelas Pretas. Foto do site do coletivo Geledés.

Por mais que o futebol gaúcho tenha chegado se popularizado através das excursões do Rio Grande – que, por sua vez, teve influência do Uruguai e dos times de Livramento – o processo foi, mais ou menos, simultâneo. O jogo de Porto Alegre que “fundou” o Grêmio, time do carinha que emprestou a bola pro jogo sair, foi em 1903. Ou seja, ainda não havia nenhum adulto negro que não tivesse nascido durante a escravidão. Por mais que, desde a lei do ventre livre (que garantiu que filhos de cativos fossem alforriados) em 1871, muitos não fossem mais “propriedade” de alguém, a figura jurídica do ESCRAVO só foi sumir das leis nacionais 17  anos depois – ou seja, pessoas podiam “se dar ao direito” de não considerar um negro como um igual. Afinal, um negro tinha que provar que não era mercadoria. O branco não precisava.

O Brasil da Primeira República era um país que estava aprendendo a lidar com as diferenças. Como simplesmente liberaram os cativos, órgãos federais fortaleceram as políticas de imigração para “repor a mão de obra”. O trabalhador que, cativo, era um instrumento de trabalho na terra, deixou de ser opção  para trabalho livre: era vagabundo, precisava apanhar pra funcionar. Assim, até 1930, pelo menos, o poder público “importou” mão de obra estrangeira da Itália, da Polônia, até do Japão. Foram anos de loucura cultural, com pessoas de várias partes do mundo chegando e tendo que adaptar a sua cultura ao novo país.  Ao mesmo tempo, os acadêmicos da época, que pesquisavam coisas como o motivo dos negros serem vadios (que era uma “fato”, pra eles), estimulavam a importação de pessoas para o “branqueamento” da população. Essa ideia era “científica”, ou  seja, tão “válida” quanto a teoria da relatividade hoje. Um dos autores mais  proeminentes nesse “campo” foi Oliveira Viana, que recomendava alemães e ingleses para “melhorar” o Brasil (europeus “de segunda linha”, como italianos, eram só um paliativo e asiáticos deveriam ser evitados). Monteiro Lobato, embora não fosse “cientista”, era um dos grandes divulgadores da ideia. E isso quase nos anos CINQUENTA.

Até os anos 40 o racismo não era apenas aceito, ele era “natural”. A Eugenia era considerada científica. Negros não podiam jogar “não por serem negros”. Nunca houve uma proibição étnica escrita. O futebol era um esporte amador; ou seja, só quem não precisava trabalhar podia jogar. O que tirava os negros do esporte era um racismo nas entrelinhas, velado. Isso criou a Liga da Canela Preta, um campeonato de várzea onde os negros podiam jogar. E fizeram isso tão bem que atraíram os olhares dos clubes quando a profissionalização começou a ser permitida. E foi nessa época que o apelido “macaco” se originou, junto com a dissolução da Liga. O Inter se declarou “o time do povo”  depois que uma equipe quase inteira da liga acabou substituindo os seus jogadores em uma tacada só. Sim, já haviam jogadores negros jogando nos dois times há “muito” tempo. Mas eles eram “meus amigos” – logo, não eram “os pretos”. É como aquele teu  amigo que vai na Geral “mas não é marginal”, tu conhece ele, é um cara bem legal. Além da história que o Lupicínio contou, há outra, sobre o time que o pai dele treinava, na liga. Dizem que só podiam jogar lá mulatos ou porteiros de hotel. Ou seja, uma conotação clara de posição social: qualquer preto que conseguisse ser porteiro de hotel era branco o suficiente para ser mulato.

Isso tudo é, aos olhos de hoje, completamente absurdo. Mas, por exemplo, minha avó nasceu em 1929. Nos anos 40, quando ainda existia a liga, ela já tinha idade para ser preconceituosa. Ou seja, tudo isso ocorreu há menos de duas gerações. É completamente histórico que o seu avô, seu pai, possam ser racistas. Nós,  não. Quem tem aí seus vinte anos, menos ainda. Faz tempo que se sabe que não existe diferença significativa entre as “raças” – só traços fenotípicos. O racismo não é uma ciência, é só preconceito e viralatismo. E aceitar que tua criação foi racista – a minha foi, e muito – não faz dos teus pais gente pior. Já disse: pelo contexto social onde se encontravam, era necessário muito esforço para não ser. Era bonito saber piadinha de preto. Hoje já superamos essa criancice.

Então, por mais que hoje tu diga que quando canta macaco não está querendo ofender ninguém, tu pode estar e vai estar. Só não me venha manobras para provar “historicamente” que uma coisa não tem a ver com a outra – isso só é possível no reino da fantasia. E, finalmente, se tu acha  que não é ofensivo chamar alguém de macaco,  não dá bola quando eu te chamo de racista. Eu também faço isso “sem intenção de ofender”.  Só quero te ajudar a se dar conta do que tu tá fazendo.

PS: embora seja o segundo texto seguido que está falando sobre o tema, essa posição não é DO BLOG, é dos seus autores.

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